Opinião: o caso OriginalMy e a diferença de gênero no mercado de tecnologia

Discussões sobre gênero são cada vez mais comuns na sociedade brasileira como um todo. Recentemente, o universo da tecnologia – em especial a área de criptoativos – tornou-se alvo de algumas situações constrangedoras em relação ao tratamento do tema, e, infelizmente, envolveu uma das empresas brasileiras mais inovadoras deste mercado: A OriginalMy.

Por termos sido responsáveis de trazer ao ar a série Mulheres na Blockchain (ver aqui, aqui e aqui), acreditamos que a forma como esse episódio que será relatado aqui foi trazida deve servir como um objeto de debate sobre como algumas pessoas ainda enxergam a inclusão das mulheres no mercado de tecnologia, especialmente quando existem situações que procuram aumentar esse número e/ou estimular mais mulheres a entrarem nas empresas, com o objetivo de lhes dar espaço e aumentar a diversidade.

O caso em questão aconteceu após a divulgação de uma vaga de emprego por parte da OriginalMy. A empresa, visando aumentar a diversidade de gênero em seu quadro de colaboradores (que atualmente conta com apenas uma mulher), resolveu divulgar uma vaga para desenvolvedora de sistemas. O anúncio focava no público feminino, daí o uso da palavra feminina.

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Segundo Mirian Oshiro, co-fundadora da empresa e única mulher na equipe atual, a vaga voltada para o público feminino possuía dois objetivos. O primeiro, seria o de aumentar a diversidade dentro da OriginalMy ao trazer mais mulheres para a equipe. Já o segundo, seria o de incentivar que mais mulheres se candidatassem para a vaga, visto que a divulgação tradicional costuma atrair poucas candidatas para as vagas da empresa.

“As pessoas não vêem problema na comunicação ‘Vaga para Desenvolvedor’, pois a língua portuguesa já prevê que grupos devem ser tratados na forma masculina. Quando divulgamos as vagas dessa forma, recemos pouquíssimos currículos de mulheres, as mulheres tendem a fazer uma auto avaliação muito pesada e muitas vezes não se consideram suficientemente qualificadas para a vaga e nem se aplicam”, afirmou Oshiro.

No entanto, o que parecia ser uma estratégia de inclusão acabou sendo recebido com uma chuva de comentários ofensivos e de agressividade raramente vista no universo cripto, após o post ter sido colocado em um grupo no Facebook. O que deveria ser uma oportunidade de trabalho, acabou se transformando em um verdadeiro enxame de comentários irônicos, machistas e até mesmo ofensivos em vários aspectos. Algo que, inclusive, assustou a própria empresa, que não esperava essa repercussão negativa.

“Dentro da OriginalMy, a princípio ficamos assustados com os ataques, nunca imaginamos que algo do tipo pudesse acontecer. Nunca havia acontecido nada parecido antes. As outras vagas da área de desenvolvimento passaram quase despercebidas. Essa mesma vaga já está publicada há algum tempo no Github e em outros canais e em nenhum deles aconteceu nada parecido com o que houve no Facebook”, confessa Oshiro

Pouco tempo depois, a vaga foi excluída do grupo no Facebook. Porém, ela ainda continua ativa no GitHub da empresa. Segundo Oshiro, o motivo alegado foi o discurso de ódio que começou a ficar presente nos comentários. Em uma reagida pesquisa, verificamos que uma das moderadoras do grupo realizou uma compilação dos comentários postados na vaga em seu perfil pessoal.

Entramos em contato com os administradores do grupo para confirmar o motivo da exclusão da vaga e recebemos resposta de um dos moderadores. Segundo Halan Pinheiro, os motivos da exclusão ainda estão sendo investigados com o moderador responsável.

Ele também criticou a reação das pessoas e ressaltou as estratégias para tentar coibir tais comportamentos:

“O grupo ainda tá passando por dificuldades pra segurar a onda dos mais exaltados que definitivamente não se conformam com as ações de empresas, grupos e eventos para promover a inclusão de mulheres em TI. E a estratégia deles é tumultuar pra deslegitimar. A nossa quanto moderadores tem sido dialogar e em casos sem jeito, bloquear comentários, suspender membros e até banimento”, afirmou.

Ironias e extremismo

Para quem chegou a ver a postagem e os comentários ao vivo, parece claro que a criação de vagas voltadas para o mercado feminino parece ser um assunto que ainda “incomoda” muitos homens. O festival de ironias e de sarcasmo contidos nas publicações foi assustador em todos os aspectos.

Um dos usuários editou a vaga e postou novamente no grupo, modificando a descrição para colocar a candidatura especificamente para homens, em uma espécie de provocação.

Já outro chegou a um extremo absurdo: o de editar a descrição da vaga e colocar uma descrição para candidatos homens e BRANCOS. Como se destacar uma oportunidade de vaga para gênero pudesse ser comparada a prática de racismo.

Poderíamos dizer que tais atitudes foram feitas apenas por trolls, pessoas que desejam poluir e se esconder atrás de perfis falsos para ofender outras pessoas ou grupos. E de fato pode ser isso mesmo. O ponto que devemos discutir, no entanto, é o de até que ponto esses comentários possuem apoio de grande parte da população masculina. A julgar pelos comentários, infelizmente ainda temos uma grande parte dos homens que rejeitam ou até mesmo tripudiam de qualquer tipo de iniciativa que vise a inclusão de mulheres no mercado de tecnologia.

Mulher, competente e inovadora

De uma certa forma, é compreensível a reação dos homens quando o assunto envolve uma vaga exclusiva para mulheres. Afinal, muitos homens ainda possuem a visão de que o movimento feminista defende a inclusão de mulheres apenas pela questão de gênero, ignorando as qualificações profissionais ou pessoais.

“Elas não querem ser selecionadas pelos seus méritos, mas apenas por serem mulheres!”, pode afirmar alguém.

Porém, isso não muda o fato de que a representação feminina no mercado de tecnologia ainda encontra-se muito abaixo do seu potencial. Uma pesquisa de 2016 publicada pela Stack Overflow reuniu mais de 56 mil profissionais que atuam na aérea de tecnologia. E os números mostrados foram decepcionantes: apenas 5,8% das entrevistadas eram mulheres. E desse número, pouco mais de 10% atuavam como desenvolvedoras.

Essa pesquisa pode passar a impressão de que o número de mulheres no mercado de tecnologia é muito baixo, ou então que elas não se interessam tanto pelo tema quanto os homens. Mas a realidade se mostra um pouco diferente. Segundo Liliane Tie, Community Builder e uma das iniciadoras do movimento Women In Blockchain, existem diversas iniciativas organizadas por mulheres no ecossistema brasileiro, mas reconheceu que ainda existe uma falta de maior representatividade – e não só no universo de tecnologia.

“Sobre a falta de mulheres atuando nas áreas de tecnologia, basta contarmos quantas iniciativas temos pelo Brasil e pelo mundo trazendo luz para essa questão. E é bom lembrarmos também que a falta de representatividade feminina não é um problema exclusivo das áreas STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática). A sociedade está cada vez mais se dando conta de que algo lá atrás falhou e o que estamos constatando hoje é apenas uma consequência”, afirma.

Um projeto que a Tie destacou foi o I Am The Code. O projeto tem como objetivo criar estruturas para habilitar 1 milhão de mulheres a se engajarem em áreas como tecnologia, artes e engenharia até 2030. A iniciativa visa promover ações de parceria com o setor privado e com governos.

Sobre o episódio envolvendo a OriginalMy, Tie afirmou que nesses casos deveria prevalecer sempre o bom senso:

“Quando uma empresa se sensibiliza com essa questão e, para equilibrar seu time tornando-o mais diverso, busca direcionar sua comunicação para ser mais inclusiva com as mulheres, minha opinião pessoal é a de que deveria prevalecer o bom senso por parte daqueles que desconhecem o problema ou por algum motivo são contra mulheres na tecnologia.”

Ela também expôs sua opinião a respeito das reações sobre a vaga:

“As pessoas são livres para manifestarem suas opiniões. Trolls infelizmente são efeitos incontroláveis em plataformas como o facebook (onde se deu o “causo”). As pessoas estão experimentando a hiper-conectividade, mas há pesquisas mostrando que o ser humano nunca se sentiu tão só como nos dias de hoje (sic), por trás dessas interfaces. De alguma forma, as pessoas querem atenção. E atacar o outro também é um sinal de que, no fundo, aquela pessoa está pedindo socorro”, finalizou Tie.

Mulheres: investidoras e profissionais

Independente das polêmicas e da pouca representatividade que as mulheres ainda possam ter no mercado de tecnologia como um todo, ao menos o mercado de criptoativos possui alguns motivos para comemorar: a participação e interesse feminino em Bitcoin e Blockchain continua a aumentar.

Podemos identificar isso principalmente no quesito investimento. Pesquisas internas do Criptomoedas Fácil revelaram que 70% da nossa base de leitores pretende continuar a investir em criptoativos nesse ano. Além disso, 33% das entrevistadas revelaram que possuem conhecimento avançado no tema.

Tal crescimento também se revelou no aumento de mulheres na base de envolvimento das exchanges. Na Braziliex, por exemplo, elas já representam mais da metade das interessadas em criptomoedas, segundo levantamento feito nas redes sociais da empresa.

E muitas mulheres já começam a se destacar como palestrantes em vários eventos de tecnologia. Como foi o caso da Campus Party Natal, que reuniu duas das palestras sobre Blockchain ou com a presença do tema sendo ministradas por mulheres.

Outro evento que também contou com participação feminina foi o The Developers Conference, realizado em Florianópolis e que vai até esse sábado. O evento contou com a participação da advogada Amanda Lima e pela desenvolvedora Solange Gueiros, que também estiveram no evento de Natal. O evento contou com duas etapas chamadas de Trilhas, uma das quais foi a Trilha Blockchain, na qual Amanda e Solange estiveram presentes.

 

 

 

 

 

 

 

 

O coordenador das Trilhas Ramon dos Santos falou sobre as participações delas no evento, ressaltando a forma didática com a qual ambas trataram um tema tão complexo. “As palestras da trilha foram de alto conteúdo técnico. Tanto a Solange como a Amanda explanaram com extrema clareza suas ideias e técnicas. A Solange apresentou o desenvolvimento de um Smart Contract na rede Ethereum enquanto a Amanda abordou questões legais sobre a blockchain. Ambas extremamente técnicas e didáticas. Passaram um conteúdo “pesado” com maestria”, disse.

Ele também falou sobre a pouca representatividade de mulheres dentro do evento, uma vez que apenas duas mulheres como palestrantes na Trilha Blockchain. “A aceitação da plateia foi muito boa. é claro que dentro de uma sociedade machista, tínhamos poucas mulheres considerando o numero de homens, mas buscamos sempre incentivar a participação delas para que inspire mais mulheres a participar de eventos técnicos, como foi é o TDC”, concluiu Ramon.

Amanda Lima falou conosco e confirmou que a expectativa foi muito positiva. “Os homens da plateia se mostraram bastante atentos e a receptividade da palestra foi muito boa. Apesar de eu ter notado a presença de poucas mulheres, o evento foi muito receptivo”, disse.

Conclusão

Dizer que ainda não existe machismo ou discurso de ódio em relação a mulheres é uma distorção da verdade. O caso da OriginalMy infelizmente trouxe a tona mais um exemplo de que tais reações ainda são muito presentes.

Pior: são reverberadas com frequência. As redes sociais possuem o impacto positivo de mantermos contato com pessoas de vários locais do mundo, mas também conseguem ter o poder de fazer o ser humano ter a “coragem” de poder revelar posicionamentos extremos e ofensivos.

Por isso, cabe a cada um de nós destacar as iniciativas que estão sendo conduzidas pelo público feminino e ajudar a retirar o verdadeiro empecilho ao desenvolvimento das mulheres em suas carreiras. Empecilhos que não estão ligados apenas a promover uma mulher por causa do seu gênero, mas a impedir que uma profissional competente tenha seu acesso ao mercado limitado apenas por ser mulher.

As mulheres já sofreram limites físicos e legais para exercerem seu potencial. Está na hora de combater os “limites” gerados também nas redes sociais.

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Luciano Rocha

Luciano Rocha é redator, escritor e editor-chefe de newsletter com 7 anos de experiência no setor de criptomoedas. Tem formação em produção de conteúdo pela Rock Content. Desde 2017, Luciano já escreveu mais de 5.000 artigos, tutoriais e newsletter publicações como o CriptoFácil e o Money Crunch.

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