Categorias Notícias

Advogada especialista em blockchain e criptoativos fala sobre eleições, regulação e ICOs

Nos últimos dias, temas como regulamentação de criptomoedas, uso da blockchain para melhorar a transparência nas eleições e vários outros ganharam destaque na mídia nacional. Tivemos até mesmo candidato utilizando a tecnologia para registrar suas propostas de governo.

Mas será que a tecnologia blockchain realmente pode resolver tudo? Quais os principais obstáculos em cada uma dessas áreas e como solucionar cada um deles de forma mais efetiva?

Para responder essas e outras questões, convidamos a advogada Tatiana Revoredo para uma entrevista exclusiva. Revoredo possui uma vasta experiência com blockchain. Ela é membro fundadora da Oxford Blockchain Foundation, estrategista em blockchain pela Saïd Business School, também da Universidade de Oxford, e pelo MIT – Massachusets Institute of Technology. Cofundadora do Global Blockchain Strategy, já foi convidada pelo Parlamento Europeu para o “The Intercontinental Blockchain Conference“, evento onde foram discutiram vários aspectos da tecnologia.

Entre vários outros projetos e eventos internacionais, Revoredo também escreve uma coluna semanal no Criptomoedas Fácil. Acostumada a falar sobre blockchain, hoje ela fala, em uma entrevista, sobre os usos da blockchain, regulamentação e também sobre seus trabalhos. Confira!

🚀 Buscando a próxima moeda 100x?
Confira nossas sugestões de Pre-Sales para investir agora

Criptomoedas Fácil: Olá, fale um pouco sobre você e como você conheceu a tecnologia blockchain?

Tatiana Revoredo: Como meu pai trabalhava no mercado financeiro, desde cedo a educação financeira fez parte da minha vida, o que, aliado a minha curiosidade natural, me levou a um App de investimentos onde existiam inúmeros fóruns de discussão sobre renda fixa, renda variável e, por uma coincidência da vida, sobre Bitcoin. Achei interessante o assunto, e logo já estava apaixonada por bitcoins, blockchain e tudo o que se relaciona ao que chamo de “mundo descentralizado”.

CF: Quais foram os aspectos que mais lhe chamaram a atenção na blockchain?

TR: O principal aspecto que me chamou atenção foi a proposta da arquitetura em si: o fato da estrutura ser projetada para ser distribuída, e a descentralização da informação reduzir a capacidade de adulteração de dados, deslocando a confiança dos agentes validadores de confiança tradicionais (os intermediários como instituições, bancos, etc) para o próprio blockchain. Então, quando eu percebi essa nova forma de construir confiança (colocando-a na matemática e na criptografia), fiquei encantada com a oportunidade de desintermediação (interação direta entre desconhecidos, ou entre pessoas que não confiam entre si) quase em tempo real.

Mas respondendo mais objetivamente à sua pergunta, os aspectos que mais me chamaram atenção na blockchain foram: a transparência, auditabilidade em tempo real, e a confiança (resiliência) da rede blockchain.

CF: Atualmente, muito se fala sobre o valor das criptomoedas e sobre da tecnologia no mercado financeiro. Quais outros potenciais de uso da blockchain que você também destacaria?

TR: Eu vejo o seu uso se destacando “inicialmente” em dez áreas principais: mídia, saúde, identidade, Internet das coisas, mercado imobiliário, governo, propriedade industrial, cadeias de suprimentos, na área social e no setor financeiro. Mas eu chamo atenção para a palavra “inicialmente”, porque Blockchain é uma GPT – General Purpose Tecnology (uma tecnologia de núcleo). E como toda tecnologia de núcleo (agricultura, ferrovias, eletricidade e internet, por exemplo), logo quando surgem, a quantidade dos potenciais casos de uso são inimagináveis. Perceba como ainda hoje estamos descobrindo a cada dia novos casos de uso para a eletricidade, por exemplo.

CF: Recentemente, a obrigatoriedade do reconhecimento de firma de documentos foi dispensada em órgãos públicos através de uma lei federal. Você acredita que esse é um passo para a adoção de sistemas mais eficientes de autenticidade?

TR: Para que nossos sistemas de autenticidade se tornem realmente eficientes, é preciso considerar que estamos caminhando para um mundo descentralizado, distribuído. O que quero dizer com isto é que desde o surgimento da internet, estamos nos direcionando para um mundo hiperconectado e cada vez mais veloz, que não comporta sistemas de autenticação centralizados e, por conseguinte, que não conseguem acompanhar a velocidade que os novos modelos de negócio criados para funcionarem na internet exigem.

Logo, a dispensa da obrigatoriedade do reconhecimento de firma em órgãos públicos, de certa forma, é um avanço para um país como o Brasil, onde 30% dos brasileiros ainda não possui acesso à internet. Mas tal dispensa, contudo, não é suficiente para atender à realidade em um mundo decentralizado que estará batendo a nossa porta.

CF: Uma pergunta polêmica: a blockchain pode tornar os cartórios obsoletos?

TR: Eu diria que cartórios neste modelo atual, centralizado, não terão espaço num futuro próximo. A evolução da internet nos permitirá, finalmente, implantar as mudanças necessárias para alcançarmos uma Rede Mundial de Computadores realmente descentralizada, distribuída. Com o surgimento da web 3.0 – assunto que abordei em um artigo no Criptomoedas fácil chamado “O futuro já está aqui; só não está totalmente distribuído ainda” –, nossos dados pessoais não ficarão mais armazenados em um servidor central.

Ao contrário, estarão distribuídos por toda a rede, eis que tecnologias já disponíveis hoje  – como as arquiteturas blockchain  – contribuirão para a construção da web 3.0, uma nova internet, decentralizada, segura e preocupada com a proteção de dados, sem a necessidade de intermediários (validadores de confiança) tradicionais, como os cartórios. Isso não significa que cartórios não serão mais necessários, mas que terão suas atividades reduzidas.

CF: Neste ano, os Estados Unidos usarão blockchain nas eleições (as midterms). Em sua opinião, essa iniciativa pode ser um passo para termos eleições via blockchain no futuro?

TR: Num primeiro momento, blockchain tem o potencial de permitir que eleitores votem diretamente em candidatos, plebiscitos ou referendos, assegurando a integridade e abrangência do processo eleitoral. E isto já está sendo efetivamente testado. O estado americano de West Virginia utilizará um App de votação em Blockchain nas midterm elections dos Estados Unidos, permitindo que seus cidadãos, residentes no exterior, votem remotamente via blockchain. Uma startup sediada em Boston, chamada Voatz, criou o aplicativo para garantir que todos votem, com segurança, caso um local de votação não esteja disponível. Tal aplicativo também será disponibilizado aos militares em missão no exterior.

Claro que algumas autoridades estão hesitantes em apoiar a tecnologia blockchain devido a sua estrutura descentralizada, e a natural aversão ao risco dos formuladores de políticas públicas. E há, ainda, quem combata duramente o uso da blockchain neste sentido, como Matt Blaze, pesquisador de segurança da Universidade da Pensilvânia, e que critica que startups como a Voatz estejam desenvolvendo solução blockchain para eleições. Eu o respeito pelos seus 25 anos de pesquisa em criptografia. Mas foram “startups” como a Apple (que nasceu numa garagem) que criaram a tecnologia que tanta nos ajuda hoje.

Acredito sim que estamos a um passo para termos eleições via blockchain e no Brasil. Inclusive, a Associação Brasileira de Fintechs já manifestou seu desejo na utilização de uma solução blockchain para a eleição de sua nova diretoria.

CF: No Brasil, as eleições deste ano foram marcadas pela desconfiança com as urnas eletrônicas. Um sistema de votação em blockchain poderia mitigar ou até eliminar essa desconfiança na lisura do processo eleitoral?

TR: A utilização de soluções blockchain é capaz de eliminar a desconfiança que paira nas urnas eletrônicas e na lisura do processo eleitoral. A combinação de hashing sequencial, criptografia, em uma estrutura distribuída, possibilita a proteção da identidade dos eleitores, e a verificação de absolutamente todos os votos inseridos na plataforma blockchain, o que assegura mecanismos de votação extremamente seguros e transparentes, permitindo o acompanhamento das eleições voto a voto.

Imagine como seria ótimo verificar se seu voto realmente foi computado para o candidato escolhido por você, sem a possibilidade de fraude, com a garantia absoluta do sigilo de seu voto. Tudo isto é possível com a tecnologia blockchain.

CF: Recentemente, o candidato a presidente Fernando Haddad registrou seu plano de governo em blockchain, visando evitar a disseminação de fake news sobre suas propostas. Você acha que essa medida tem alguma utilidade prática se trata-se apenas de um “ato simbólico”?

TR: Se considerarmos a característica da imutabilidade proporcionada pela tecnologia blockchain, o registro do plano de governo de um candidato em blockchain garante que a informação e os dados lá registrados não podem ser adulterados. Afinal, para ocorrer a modificação das informações registradas em um blockchain não se reescreve (armazena-se “toda alteração” de dados em um novo bloco, mostrando que a informação X mudou para Y em data e hora específicas).

Neste sentido, sim, blockchain possui utilidade prática, pois possibilita que a identificação de notícias falsas quanto ao teor do plano de governo do candidato de forma rápida, barata e segura. Logo, blockchain pode se tornar uma arma essencial na luta contra notícias falsas e propaganda enganosa, arma esta que já vem utilizada pela startup Eventum, da Eslovênia.

CF: O que você pensa sobre as ICOs e as vantagens desse modelo de financiamento?

TR: Essas ICOs são um tipo de crowdfunding onde a empresa vende criptoativos, ou tokens, com a finalidade para levantar dinheiro para financiar suas operações (o uso da Ethereum tem sido um meio particularmente popular nos ICOs. Os tokens emitidos pela empresa normalmente são usados ​​no futuro como 1) meio de pagamento de produtor ou serviços em uma plataforma que a empresa irá ou já está desenvolvendo, 2) uma criptomoeda mais geral ou 3) representação de algum investimento de capital adjacente em uma empresa.

Uma das vantagens que enxergo neste modelo de financiamento é que as ICOs são usadas para evitar altos custos regulatórios associados aos meios tradicionais de captação de recursos. As corretoras de criptomoedas permitem que as empresas obtenham rapidamente fundos de uma base de investidores globais no estágio inicial de formação de negócios. No entanto, as ICOs geralmente são pouco transparentes e os tokens emitidos, que não oferecem aos investidores os direitos de governança e participação nos lucros conferidos a investidores tradicionais, têm um valor bastante volátil, de modo que expõem os investidores de varejo a um risco considerável.

Outra vantagem é que o tempo médio necessário para que uma empresa levante o capital necessário para financiar suas operações através de uma ICO é bastante reduzido, se comparado com o mercado tradicional de captação de recursos.

Ainda, as ICOs possibilitaram a captação de investimentos para um nível global, bem como democratizaram a entrada de pequenos investidores, hoje afastados do mercado tradicional pelas deficiências do sistema atual. Tais deficiências vão desde o excessivo rigor burocrático, dificuldade de cadastramento para a negociação de ativos, bem como as altas taxas e custos cobrados pelas corretoras de valores para intermediarem a negociação de ações na bolsa de valores, por exemplo.

CF: A regulamentação dos criptoativos também ganhou destaque. Em sua visão, uma regulamentação trará mais benefícios ao mercado?

TR: Primeiro, acho importante pontuar que as criptomoedas surgiram, justamente, para contrabalançar a interferência do governo na privacidade e política monetária dos cidadãos. Outro ponto a considerar, é o fato de que os órgãos reguladores e os legisladores estão aprendendo, assim como toda a sociedade, a lidar com esses novos ativos digitais, descentralizados e com alcance global.

Ainda, levando em conta a natureza extraterritorial da tecnologia blockchain e a falta de vinculação jurisdicional associada às criptomoedas, ou seja, a facilidade de transferir criptomoedas para o exterior e o fato de serem ativos intangíveis, é muito difícil para qualquer país regular criptoativos sem trabalhar com outros governos. Isto sem falar que o regulador é sempre o último a perceber o que está acontecendo no mercado e o primeiro a ser acionado quando alguém precisa de orientação. Por outro lado, há sempre um relação entre inovação e risco. Os reguladores, por sua vez, costumam ser avessos ao risco, porque é o risco que eles procuram evitar.

Uma regulação “do ecossistema” dos criptoativos (pois entendo impossível regular a tecnologia em si), e que apoie a inovação, buscando soluções construtivas pra os novos desafios que surgirem desse nova ecossistema, trará mais benefícios ao mercado. No entanto, vale a pena refletir até que ponto é saudável uma regulação protetiva, e em que sentido a lei deve intervir. Deve-se colocar a proteção do consumidor sempre à frente da liberdade individual de escolha? Ou a abordagem deve ser menos restritiva a mais a favor da liberdade individual? O nível educacional da população a ser atingida por essa regulamentação, os costumes prevalentes no país, dentre outras ponderações, merecem ser considerados pelo legislador. Neste quadro, minha resposta a sua pergunta é: depende de como ela for executada.

CF: Você é membro fundadora da Oxford Blockchain Foundation. Como alguém envolvido no cenário europeu, quais as principais preocupações dos reguladores da União Europeia em relação ao mercado de criptoativos?

TR: O que percebi nos meetups do OXBC, no 1º Crypto Finance Conference (ocorrido em St. Moritz em janeiro deste ano), no Fórum Econômico Mundial de Davos, e no International Blockchain Conference (evento realizado no Parlamento Europeu, destinado a discutir regulação de criptomoedas e ICO, além das aplicações blockchain), é que as principais preocupações dos reguladores da UE em relação ao mercado de criptoativos giram em torno do impacto das criptomoedas no que diz respeito à proteção dos consumidores e investidores, evasão fiscal, integridade do mercado, lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo.

CF: Você lançou um livro recentemente, o Criptomoedas no Cenário Internacional: Qual é o posicionamento de Bancos Centrais, Governos e Autoridades?. Pode comentar sobre os temas abordados no livro?

TR: O livro, escrito em parceria com Rodrigo Borges, lançado 10 anos após a publicação do White Paper do Bitcoin por Satoshi Nakamoto, está disponível na Amazon Brasil e mostra como as criptomoedas são percebidas no cenário internacional. O capítulo inicial fornece uma visão geral do universo criptográfico, onde é apresentado conceitos básicos sobre blockchain, criptomoedas e criptoeconomia (como a origem das criptomoedas, o que é descentralização, rede P2P, mecanismo de consenso, etc), a fim de familiarizar o leitor com o assunto e permitir uma compreensão e análise crítica da postura dos diversos governos e autoridades (que será apresentada ao longo do livro).

Já o segundo capítulo, mostra os principais desafios a serem superados para que as criptomoedas cheguem ao mainstream, como as barreiras culturais (Silk Road), a política tributária, o combate à lavagem de dinheiro e os reguladores de valores mobiliários.

O terceiro e quarto capítulos abordam a posição dos bancos centrais, governos e autoridades em relação às criptomoedas. O quinto capítulo, por sua vez, traz questões sobre a viabilidade, ou não, de se regular as criptomoedas? Por fim, o capítulo 6 traz as conclusões finais.

CF: Baseada em sua experiência, quais são os três países que mais avançaram em relação à regulação do mercado de  criptoativos. Quais são os países que possuem uma visão mais hostil, em sua opinião?

TR: Os três países que enxergo mais avançados na regulamentação do ecossistema de criptoativos são Malta, Suíça e Gibraltar. Os três países com visão mais hostil são China, Índia, Estados Unidos.

CF: Além da política e dos financiamentos coletivos, quais setores você acha que podem se beneficiar da blockchain de maneira mais tangível?

TR: Sem dúvida, o supply chain é a aplicação mais evidente que pode se beneficiar da blockchain de maneira mais tangível. A cadeia de suprimentos (supply chain, em português)  representa todos os elos envolvidos na criação e distribuição de mercadorias, desde as matérias primas até o produto final e acabado, entregue ao consumidor.

Atualmente, as cadeias de suprimentos abrangem centenas de estágios e dezenas de localizações geográficas, o que dificulta o rastreamento de eventos ou a investigação de incidentes. Em breves palavras, a complexidade e não integração das cadeias de suprimentos têm dificultado sobremaneira a ampla e eficiente rastreabilidade de ponta a ponta, bem como a fiscalização ao longo da cadeia.

Logo, considerando os parâmetros para uma cadeia de suprimentos ideal (visibilidade de ponta a ponta, flexibilidade, confiança e controle), e as qualidades presentes na tecnologia blockchain (transparência, auditabilidade em tempo real e confiabilidade das informações uma vez registradas na rede blockchain), o supply chain é o caso de uso mais tangível, e que certamente se beneficiará da redução dos intermediários propiciada pela blockchain, com consequente aumento de eficiência em toda a cadeia e a redução de custos.

O mercado imobiliário é outro setor que pode se beneficiar das estruturas blockchain de modo mais tangível, eis que:

1) a implementação de blockchain permite acesso instantâneo a todas as informações (exigidas em uma transação imobiliária) de modo automatizado, instantâneo e com alto índice de confiança;

2) aumentaria a transparência e possibilitaria a gestão de propriedade e fluxo de caixa mais inteligentes (com a liberação automática via smart contracts da averbação de dívida em matrícula de imóvel com a quitação de hipotecas, pex.);

3) tornaria o processamento de financiamento e pagamentos mais eficiente (com o crescimento do financiamento coletivo de imóveis, possibilitando a entrada de pequenos investidores, hoje afastados do mercado imobiliário pelas deficiências do sistema atual, deficiências que vão desde altos custos por transação até a dificuldade de cadastramento e automação de fluxos de pagamento).

CF: Obrigado pela atenção e disponibilidade. Deixo o espaço fica aberto para seus comentários.

TR: Eu que agradeço o convite, Luciano. Este espaço disponibilizado pelo portal Criptomoedas Fácil é muito importante, pois traz às pessoas a oportunidade de aprender mais sobre blockchain e todo seu potencial de impactar profundamente relações de governança, modos de vida, modelos corporativos tradicionais, instituições em escala global e a sociedade como um todo.

Compartilhar
Luciano Rocha

Luciano Rocha é redator, escritor e editor-chefe de newsletter com 7 anos de experiência no setor de criptomoedas. Tem formação em produção de conteúdo pela Rock Content. Desde 2017, Luciano já escreveu mais de 5.000 artigos, tutoriais e newsletter publicações como o CriptoFácil e o Money Crunch.

This website uses cookies.