Entrevista exclusiva: eleições presidenciais com blockchain já são realidade em Serra Leoa

A blockchain é uma grande promessa para a modernização de inúmeros procedimentos em nossa sociedade. Entre eles, a relação entre o cidadão e as instituições públicas deve ganhar um novo status quando boa parte de seus processos passarem a utilizar a transparência, a segurança e a imutabilidade da tecnologia.

Um dos processos mais sensíveis que atualmente é totalmente no controle do Estado é o processo eleitoral e, com ele, a base de todo o sistema democrático. Ele que estipula as regras, determina a forma, realiza o processo eleitoral, fiscaliza o processo realizado por ele mesmo e, por fim, determina o vencedor. Em todo este processo, o cidadão comum, em praticamente 99% dos casos, só participa votando, sendo praticamente impossível para ele ‘fiscalizar’ este processo.

No entanto, a blockchain pode mudar este cenário e introduzir não apenas agilidade, mas transparência e uma participação mais efetiva da população no processo eleitoral. Neste sentido, a startup “Agora” realizou em Serra Leoa, um dos projetos mais ousados até o momento, e atuou como um dos observadores credenciados no processo eleitoral para presidente da nação. Um dos países mais pobres do mundo e no qual o processo eleitoral é marcado por uma intensa tensão que envolve não apenas as “Fake News” e vazamento de dados, mas corrupção e morte.

Quando a Agora divulgou seus primeiros resultados, muita especulação e desinformação surgiu em boa parte da divulgação. Por isso, o Criptomoedas Fácil entrevistou Leonardo Gammar, CEO da Agora, para entender como tudo isso aconteceu e porque a escolha de Serra Leoa, uma das nações mais pobres do mundo e sem tradição tecnológica.

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Criptomoedas Fácil: Por que a Agora, uma startup suíça, escolheu Serra Leoa?

Leonardo Grammar: Escolhemos Serra Leoa por algumas razões, a primeira delas pessoal. Eu sou tunisiano e pude presenciar como a democracia muda a sociedade (a Tunísia foi o berço da Primavera Árabe, movimento por mudanças democráticas na região do Magreb, que culminou com a guerra na Síria). Serra Leoa vive o mesmo momento é primeira vez na história que havia tantos partidos concorrendo a eleição e quando o partido do governo esteve realmente ameaçado quanto ao seu domínio em vencer o processo eleitoral. Logicamente, também há uma razão profissional, e neste campo, Serra Leoa demonstrou ser o desafio mais interessante para a nossa plataforma, afinal, há no país, inúmeros desafios em relação à escolaridade das pessoas, o acesso aos serviços básicos e aos serviços de internet, as questões envolvendo a exploração de diamantes, isso sem falar na corrupção e na violência que norteia todo o processo eleitoral, por isso, decidimos que, se nossa plataforma for eficiente e conseguir mostrar todo seu potencial em um país imerso nas mais diversas dificuldades, então saberemos que realmente temos uma plataforma eficiente e capaz de ser aplicada em todo o mundo.

CF: O Brasil irá passar por um processo eleitoral presidencial este ano. Processo cujo a tecnologia blockchain seria imensamente importante se usada como instrumento de verificação independente. Vocês estão planejando algum projeto na América Latina?

LG: No momento não. Nós estamos empenhados em transformar a Agora em um solução verdadeira para eleições em blockchain, por isso estamos tomando todos os cuidados possíveis e isso envolve muitos preparativos e o entendimento dos processos eleitorais que são diferentes em cada nação. No caso de Serra Leoa por exemplo, todos nossos e-mails e telefonemas foram gravados para mostrar que ambos tinham a intenção de fazer tudo de forma transparente e correta. Logicamente, eu ficaria muito feliz em começar a trabalhar com a América Latina, mas tudo tem que ser feito passo a passo, afinal o processo eleitoral define a vida de milhões de pessoas e talvez de muitas gerações, além dos limites territoriais da nação em questão. Por exemplo, veja o caso dos EUA com o Facebook e você terá uma dimensão disto que estou falando. Então tudo tem que ser feito passo a passo. Temos que ir até o país, iniciar um ponto de relacionamento, entender as leis, entender quais são os limites, as restrições, e claro entender que, no momento, não é possível trabalhar com uma votação 100% digital, devido aos problemas de infraestrutura que todas as nações enfrentam. Mas claro que seria uma grande oportunidade trabalhar com a América Latina.

CF: Como foi a receptividade das autoridade de Serra Leoa para a proposta da Agora?

LG: Sinceramente, fiquei bastante surpreso com a mente aberta e a inteligência das pessoas da comissão eleitoral de Serra Leoa e da consciência deles sobre a importância da tecnologia nos processos eleitorais, embora eles não soubessem muito o que era e como funcionava a blockchain. Fizemos toda uma explicação sobre o que é e como funciona a blockchain, e como ela poderia fornecer mais confiança para todo o processo eleitoral, além da segurança envolvida na tecnologia quanto à imutabilidade dos dados. Convidamos, além do pessoal de TI da comissão eleitoral, até hackers para avaliar a tecnologia e tentar alterar os resultados por meio de diversas técnicas, então eles puderam identificar e ver ‘in loco’ todo o potencial de nossa plataforma e eles entenderam todo o potencial de uma tecnologia descentralizada e como ela pode ajudar a economizar até mesmo dinheiro, pois elimina as estações de voto, você não precisa pagar os salários dos funcionários das zonas eleitorais, horas extras, você não precisa alugar os escritórios e todos os custos em relação a segurança de todo o processo eleitoral. Em Serra Leoa, por exemplo, é preciso pagar o exército para sair de sua sede e acompanhar os comboios que trazem os itens eleitorais. Você tem que contar com tanques, soldados, armas, você tem que, às vezes, esvaziar hospitais e com isso mobilizar médicos, enfermeiros, pacientes e todo uma estrutura que representa um enorme custo para o estado, ainda mais para nações como Serra Leoa. Muitas vezes isso tudo envolve o país ter que emprestar dinheiro para realizar as eleições e quando isso ocorre, além dos juros e também do custo envolvidos, você também cede um pouco da sua soberania. Por tudo isso a receptividade foi excelente e eles entenderam como e viram como a tecnologia blockchain pode ajudar o mundo a realizar eleições mais transparentes e eficientes.

CF: A Agora era um observador independente no processo eleitoral de Serra Leoa, correto? Portanto, a eleição “oficial” não foi feita em blockchain?

LG: Sim, nós não atuamos como plataforma na eleição oficial e houve muita confusão na mídia internacional sobre isto. Nós atuamos como observadores credenciados e portanto, nossos resultados não são “oficiais” para dizer quem foi eleito e quantos votos teve determinado candidato. Somos observadores e junto com a comissão eleitoral definimos realizar nosso trabalho focado área oeste, na qual estão as capitais e é a área mais populosa da Serra Leoa. Portanto, as pessoas não votavam usando qualquer dispositivo fornecido pela Agora, seja ele online ou offline. Elas se dirigiam até a sessão de votação oficial e utilizavam todo o aparato tradicional da Comissão Eleitoral de Serra Leoa. Assim, elas votavam nas cédulas de papel, escolhendo seus candidatos, depositavam estas cédulas na urna e após o término da votação as cédulas eram contadas, ou seja, a votação oficial era totalmente tradicional e não havia qualquer envolvimento nosso no processo. Após a abertura das urnas, quando a contagem oficial começou é que iniciou nossa participação. Eles abriram as urnas e iniciaram a contagem oficial, contando cada voto 5 vezes, uma vez para cada tipo de votação existente e aqui os observadores credenciados, como nós, podiam fazer suas contagens independente. E foi assim que fizemos, registrando os votos feitos em papel em nossa blockchain. Após esta contagem, os votos seguiam em caminhões e carros, num comboio para a Central da Eleição, um procedimento que envolveu muitos outros problemas e, veja, há muito trabalho humano em todo o processo de contagem e sabemos como isso pode ocasionar fraudes mesmo com uma supervisão atenta, por isso uma solução em blockchain é imensamente importante. Após este processo, todos nós, observadores, fomos orientados a não divulgar qualquer resultado de nossa contagem independente, portanto, não oficial, de qualquer etapa da eleição, antes da Comissão divulgar o resultado oficial. No nosso caso, os resultados divulgados foram, praticamente, os mesmos dos divulgados pela Comissão, demonstrando como tudo ocorreu de forma clara e transparente e também como uma solução em blockchain pode sim ser viável e segura para qualquer tipo de votação.

CF: Em Serra Leoa, tivemos então uma eleição tradicional que teve uma verificação independente e não oficial em blockchain, mas como funcionaria uma eleição realmente feita em blockchain?

LG: Estamos implementando testes de um sistema de votação totalmente digital aqui na Suíça, que será parte das soluções da Agora. Por meio dele, o Estado ou a Instituição que deseja implementar este processo nos fornecerá uma lista de eleitores, então pedimos às pessoas que querem participar daquele evento com seu voto (no caso do voto ser facultativo) para baixar um aplicativo e se registrar nele e então temos muitos mecanismos criptográficos para fazer as listas coincidirem pois muitas pessoas pode se registrar para participar do processo e na verdade não estão permitidas pelas regras governamentais ou daquele processo eleitoral a votar e participar do evento. Após este filtro e combinação entre as duas listas temos uma lista oficial e iniciamos a votação, que, diferente da votação que ocorre hoje em todo o mundo, na qual a pessoa vota e não pode alterar o voto, o voto fica “aberto” durante todo o período de votação. Por exemplo, no dia 02 de janeiro, durante todo este dia, enquanto o período de votação estiver aberto a pessoa pode registrar o seu voto e, depois, mudar ele, até que esteja certa e enfim registre o seu voto ‘oficial’. Desta forma iremos permitir que as pessoas votem remotamente a partir do lugar que quiserem, em dispositivos pequenos, em iPad ou em computadores tradicionais. Usando o seu ID que foi gerado e registrado em blockchain você recebe uma chave. Com essa chave você pode votar. E você nem precisa ter um telefone próprio para votar, você precisa desta chave criptográfica sua (como a chave privada do Bitcoin), assim um mesmo aparelho pode ajudar várias pessoas a votarem, o que é extremamente importante em comunidades mais carentes, além disso, se você não tiver telefone, você pode ir às assembleias de voto e votar em iPads ou em computadores ou pode pedir emprestado o telefone de outra pessoa, sou seja, também já é uma solução para atingir áreas remotas, populações carentes e mesmo áreas com pouca cobertura de internet. Estamos tentando fazer parceria com a ONU para desenvolver este programa de dispositivos inteligentes ao custo de US$ 1 para enviar a países em desenvolvimento para que todos possam participar de um processo eleitoral. A implementação completa também vai permitir que após a votação encerrada você pode fazer o upload dos blocos em seu dispositivo. Você também vai poder verificá-los. Tornando a eleição muito mais do que apenas colocar o voto em um caixa, mas você também será o eleitor e o verificador da eleição, aquele que vota e aquele que fiscaliza o voto, tornando-se efetivamente o guardião da democracia de seu país.

CF: Você acredita que a votação utilizando a blockchain tem a possibilidade de eliminar todas as fraudes que estão presentes no processo eleitoral?

LG: Veja, existem inúmeras fraudes durante todo o processo eleitoral e mesmo antes deles. Você pode fraudar a eleição até mesmo pela lei, por exemplo, você está no poder e detém a maioria do poder também no legislativo e então muda as regras para impedir que um adversário potencial participe do processo eleitoral, isto já é uma fraude e na qual a blockchain não pode fazer nada. Igual a esta há outras etapas do processo eleitoral nas quais a blockchain ou qualquer outra tecnologia é ineficiente para impedir que fraudes aconteçam. No entanto eu acredito que por meio da blockchain podemos eliminar a maioria das fraudes eleitorais, com por exemplo, a compra de votos e todos os problemas envolvido no transporte e na contagem manual, entre outros. Além disso, um software em blockchain permite um desenvolvimento mais rápido para todo o processo, assim, ao identificar um novo tipo de possibilidade de fraude, você adapta o sistema e pronto, o sistema já está pronto para todos, diferente da forma tradicional que é feita hoje onde cada mudança é praticamente impossível de ser implementada em tempo real por toda a questão logística e de infraestrutura inerente ao processo. Eu realmente acho que a descentralização e a distribuição são realmente uma solução para muitos problemas das fraudes e para tornar os processos eleitorais mais transparentes.

CF: Quais são os maiores desafios para os países adotarem as soluções blockchain para todo o processo eleitoral?

LG: Acredito que apenas a vontade de fazer. Muitos podem imaginar que seria o problema da eletricidade ou da internet, afinal, uma votação oficial em blockchain envolve, obrigatoriamente, estes dois fatores, mas veja, com uma solução em blockchain e de forma remota como expliquei acima, com um ID/chave criptográfica própria. Você pode ir até um local de votação, caso não possua um dispositivo que lhe permita votar ou mesmo conexão com internet, em Serra Leoa, por exemplo utilizamos dongles e fornecemos internet nas estações de voto. Veja, você pode não ter uma ideia exata de como é realmente Serra Leoa e o processo eleitoral lá, e mesmo assim, foi possível fazer, num dos lugares mais pobres do mundo. Nos lugares sem internet ou eletricidade é possível implementar estes dois serviços e mesmo assim a eleição ficar até 70% mais barato que a média do que as eleições normais, porque, como eu disse, você gasta menos dinheiro com o exército, gasta menos dinheiro na polícia, gastar menos dinheiro em hospitais, você gasta menos dinheiro em proteger áreas e horas extras, em funcionários. Além disso os dispositivos que podem ser usados para criar zonas oficiais de votação são imensamente mais baratos que a criação e desenvolvimento de urnas eletrônica específicas para este fim, os EUA, por exemplo, devem gastar mais de US$ 3 bilhões para mudar seu sistema para um sistema de urna eletrônica.

CF: Qual foi a principal lição aprendida no caso de Serra Leoa e o que mostrou que precisa ser melhorado para a adoção em um país como o Brasil, por exemplo?

LG: Acredito que a principal lição foi de que cada país é diferente e portanto possui modos, formas e culturas diferentes tanto no processo eleitoral como na relação entre a população e o processo democrático. Então, você tem que estar atento e levar em conta todas estas variantes para que a sua solução permita realmente ao eleitor expressar o seu desejo ao votar. Assim, o que mais aprendi é que não há uma solução única e imutável, mas sim uma solução que se adapta, se transforma e também ‘aprende’ com o eleitor para que os resultados possam expressar cada vez mais e melhor a vontade real deste eleitor. Nossos clientes são os governos, nossos clientes são os estados, mas por trás dos estados estão os cidadãos e nós temos que entender o que os cidadãos precisam, o que ele está disposto a ter em seu país para melhorar sua nação como um todo, por isso temos sempre que ter este eleitor e suas necessidades em primeiro plano para que eles possam cada vez mais expressar a sua vontade por meio de seu voto e ter a certeza que o seu voto, o seu desejo expresso naquela decisão de escolher entre um e outro, não seja adulterado, fraudado ou esquecido.

As eleições em Serra Leoa foram vencidas pelo candidato da oposição e ex-líder da junta militar Julius Maada Bio, representando o Partido Popular da Serra Leoa (SLPP), com 51,81% dos votos. Ele derrotou o ex-ministro das Relações Exteriores Samura Kamara, candidato do Congresso de Todos os Povos (APC), que ficou com 48,19%.

O resultado oficial contrasta com as previsões e pesquisas anteriores que davam como vitorioso Kamara. Os resultados da Agora, no distrito eleitoral que fez parte do caso de uso da startup, também indicavam que Kamara estava à frente. O candidato está contestando os resultados oficiais e entrou com um processo para a realização de novas eleições junto ao Supremo Tribunal da nação.

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Cassio Gusson

Cássio Gusson é jornalista há mais de 20 anos com mais de 10 anos de experiência no mercado de criptomoedas. É formado em jornalismo pela FACCAMP e com pós-graduação em Globalização e Cultura. Ao longo de sua carreira entrevistou grandes personalidades como Adam Back, Bill Clinton, Henrique Meirelles, entre outros. Além de participar de importantes fóruns multilaterais como G20 e FMI. Cássio migrou do poder público para o setor de blockchain e criptomoedas por acreditar no potencial transformador desta tecnologia para moldar o novo futuro da economia digital.

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