No início de março, uma notícia divulgada pelo jornal britânico The Telegraph chamou a atenção. Em sua matéria, o jornal afirmou que a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou que o uso de dinheiro em espécie poderia disseminar o coronavírus, aumentando os riscos de contágio. A matéria também destacou que a OMS recomendava que as pessoas deveriam utilizar pagamentos via NFC ou com cartões de crédito para evitar a contaminação.
A notícia ganhou muita repercussão e, mesmo com uma representante da OMS desmentindo a informação do Telegraph uma semana depois, reacendeu um debate: será que está na hora de banir o uso do dinheiro em espécie?
A discussão sobre proibir a circulação de determinadas cédulas não é nova. No final de 2016, o governo da Índia retirou de circulação as notas de 500 e 1000 rúpias, então as de maior valor nominal do país. De acordo com o primeiro-ministro Narendra Modi, o objetivo da medida era evitar o uso de cédulas de alto valor por criminosos em crimes como lavagem de dinheiro, evasão fiscal, sequestros e outros.
O exemplo mais famoso de país que está próximo de banir o dinheiro em espécie, no entanto, é a Suécia. Em 2018, o país foi destaque por estar próximo de utilizar meios de pagamento totalmente digitais. A predominância desses meios fez o governo repensar sobre qual o impacto que o dinheiro de papel ainda possui na sociedade sueca. Com o avanços das pesquisas do país para desenvolver sua própria moeda digital, a tendência é que o dinheiro vivo perca cada vez mais importância.
Argumentos pró-banimento
As justificativas para o fim do dinheiro em espécie são defendidas principalmente pelo economista norte-americano Kenneth Rogoff. Autor do livro Curse of Cash (A Maldição do Dinheiro) e ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), Rogoff traz dois argumentos para defender a tese de que os governos devem acabar com o uso do dinheiro em espécie.
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O primeiro deles é um argumento criminal. Rogoff explica que por conta do seu alto grau de privacidade e da dificuldade de rastrear as cédulas, o dinheiro em espécie é muito utilizado para crimes como tráfico de drogas e pessoas, sonegação de impostos, jogos ilegais e subornos para políticos, entre outros. Ao abolir o dinheiro vivo, os governos eliminariam o fator privacidade e teriam mais poder para rastrear transações financeiras, cobrar impostos e localizar criminosos.
O segundo argumento de Rogoff para o fim do dinheiro em espécie é que tal atitude aumentaria o poder dos governos de colocar em prática suas políticas monetárias. O economista afirma que a aplicação atual de políticas de estímulo, como os juros negativos, é limitada pela existência do dinheiro em espécie. Caso um banco resolvesse impor taxas de juros negativas aos seus clientes, eles poderiam simplesmente sacar seu dinheiro. Isso poderia gerar corridas bancárias que levariam à falência o sistema bancário, visto que, como operam em um sistema de reservas fracionadas, os bancos não têm como honrar todos os saques em caso de tal cenário ocorrer.
Mas, se não houver dinheiro, não há escapatória nem corrida de saques. Os bancos ficariam livres desse risco. Assim, acabar com o dinheiro é dar aos bancos centrais uma arma poderosa para estimular o consumo – na visão de Rogoff.
Passo a passo
Em seu livro, Rogoff chega a dar um pequeno manual sobre como o fim do dinheiro em espécie seria orquestrado de forma a evitar riscos ao sistema e convulsões sociais. Em primeiro lugar, é preciso bancarizar toda a população, com a criação de contas subsidiadas para os mais pobres, e emitir títulos de créditos nessas contas, em troca do recolhimento das cédulas.
No entanto, o dinheiro vivo não seria totalmente abolido. Rogoff defende que cédulas e moedas de menor valor devem continuar ativas para evitar problemas decorrentes da dependência completa do cartão, como uma queda no sistema, por exemplo.
No entanto, o plano enfrenta um grande problema. Especialmente nos países mais pobres, o índice de bancarização é muito baixo. Na própria Índia, menos de 35% das pessoas possuem conta em banco, o que significa mais de 800 milhões de indianos (quase 4 brasis) que dependem totalmente do dinheiro em espécie. Mesmo no Brasil, com o aumento no uso de serviços de fintechs nos últimos anos, apenas 60% dos brasileiros possuem contas bancárias. Abrir contas bancárias para essas pessoas demandaria um enorme custo para governos ao redor do mundo.
Porém, mais do que as dificuldades e o alto custo, a grande questão é: será que o governo deve mesmo abrir mão do único mecanismo que proporciona alguma liberdade aos cidadãos?
Os riscos de banir o dinheiro em espécie
Antes de explicar os riscos, preciso fazer um disclaimer: particularmente, eu não gosto de utilizar dinheiro em espécie. Não tenho paciência para guardar e contar notas e moedas, sem falar que o uso de cartões (débito e crédito) é muito mais prático para a realização do meu controle financeiro de gastos e investimentos. Na prática, eu já aboli quase totalmente o uso de dinheiro vivo na minha vida.
No entanto, uma coisa é abrir mão de usar dinheiro de forma voluntária. Outra é o governo utilizar a força da lei para banir determinadas cédulas ou todo o dinheiro em espécie. E o segundo caso possui uma série de riscos.
Em primeiro lugar, Rogoff parece viver em uma bolha na qual todas as pessoas possuem contas em bancos ou é muito fácil abrir uma conta. Isso pode ser verdade em países como Estados Unidos e os países da União Europeia – e até no Brasil, com o advento das fintechs. Mas não serve para a maioria dos países do mundo. Em vários lugares, ter uma conta bancária pode ser extremamente trabalhoso e caro, além de exigir documentação a que muitas pessoas (especialmente dos países mais pobres) ainda não possuem acesso.
Além disso, uma das vantagens que Rogoff aponta em acabar com o dinheiro é justamente o seu maior ponto fraco: o aumento do controle monetário do estado. O fim do dinheiro em espécie praticamente acabaria com os limites que governos possuem para realizar manipulações em suas moedas. Não apenas as políticas monetárias irresponsáveis dos últimos anos seriam continuadas, como teriam ainda mais vigor, e a população não teria como se proteger disso.
Outro problema é que o dinheiro totalmente digital é muito mais fácil de ser confiscado ou bloqueado por bancos e governos. Como vimos no Brasil dos anos 1990, o confisco de aplicações financeiras é uma possibilidade real, especialmente em momentos de crise. Ao depender exclusivamente de pagamentos digitais, as pessoas não poderiam sacar seu dinheiro e impedir que o confisco afetasse seu patrimônio e até mesmo as levasse à pobreza.
Bitcoin como alternativa
No entanto, o fim do dinheiro em espécie poderia beneficiar muito um ativo em específico: o Bitcoin.
Por ser um ativo que não depende de nenhuma política monetária de governo, não é controlado por nenhum país e é imune aos efeitos de juros negativos e inflação, o Bitcoin poderia se tornar o refúgio de pessoas que buscam um ativo que tenha as vantagens do dinheiro em espécie, mas seja muito melhor.
Sem o dinheiro vivo, um cidadão de um país cujo governo desvaloriza a sua moeda em excesso ou confisca bens e dinheiro de sua população poderá comprar Bitcoins e evitar esse confisco, protegendo parte do seu patrimônio. Por outro lado, o fim do dinheiro vivo pode tornar mais fácil para os governos proibirem compra e venda de Bitcoin por meio das contas bancárias sob seu controle.
Conclusão
O dinheiro em espécie é uma tecnologia obsoleta e provavelmente está com seus dias contados, haja vista a tendência de aumento do uso de smartphones e meios de pagamento digitais nos próximos anos.
Porém, diferentemente de outras tecnologias que se tornaram obsoletas, o dinheiro em espécie ainda fornece proteção, privacidade e refúgio para milhões de pessoas ao redor do mundo. Proibi-lo por meio de políticas governamentais apenas dará mais poder ao estado e menos poder ao cidadão, como a História claramente nos mostra.
Se você abriu mão voluntariamente do uso do dinheiro em espécie, entenda bem as implicações de sua proibição. E, por segurança, tenha sempre Bitcoin consigo.
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Aviso: O texto apresentado nesta coluna não reflete necessariamente a opinião do CriptoFácil