Nesta semana, o Criptomoedas Fácil divulgou que a pré-candidata à presidência da república Marina Silva (Rede Sustentabilidade) utilizará a tecnologia blockchain para efetuar os registros de doações para sua campanha.
A candidata usará a plataforma Voto Legal, que faz uso da tecnologia da Decred para efetuar os registros. O processo já possui homologação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a campanha da candidata é pioneira entre as de possíveis candidatos à presidência do Brasil de 2018 a utilizar registro em blockchain, o qual fornece maior segurança e transparência na verificação das doações.
Com o intuito de trazer mais informações sobre o Voto Legal e o seu uso nas eleições deste ano, o Criptomoedas Fácil realizou uma entrevista exclusiva com Thiago Rondon, criador da AppCívico. Rondon é diretor executivo na EOKOE, empresa que apoia organizações na exploração de novos propósitos, e na AppCívico, que atua com tecnologias cívicas junto a políticos, governos e sociedade civil. Ele também escreve semanalmente na coluna “Multidões” na Época Negócios sobre “tecnologia, organismos e poder”, além de ser entusiasta e colaborador de projetos de software livre e o movimento de dados abertos.
Nesta entrevista, conversamos mais sobre o Voto Legal, a tecnologia por trás do aplicativo e, principalmente, as motivações e planos de longo prazo para a ideia inovadora.
Criptomoedas Fácil: Olá Rondon. Primeiramente, queremos falar mais aos nossos leitores sobre a AppCívico e o Voto Legal. Você poderia nos contar mais sobre como funcionam e como surgiram?
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Thiago Rondon: O AppCívico é uma iniciativa que desenvolve tecnologias cívicas, a qual visa empoderar cidadãos ou tornar governos mais acessíveis e eficientes. Já desenvolvemos diversas plataformas, para governos, políticos, organizações sociais e empresas. Trabalhamos para identificar as melhores tecnologias utilizadas para nossa missão e contribuímos para que estas soluções chegam o mais rápido possível para atores sociais e de impacto.
Um dos nossos desafios na política é a digitalização política. Estamos atuando em campanhas eleitorais com o Voto Legal, com mandatos com a plataforma a Mandato Aberto, e queremos fortalecer a transparência radical nos partidos políticos com outra plataforma.
O Voto Legal é uma iniciativa que busca construir campanhas mais baratas e justas com o apoio financeiro. Queremos construir uma nova moeda para democracia, que ela seja com base no apoio de cidadãos. Em 2016, quanto mais doadores um candidato teve nas capitais, o custo por voto caiu, proporcionalmente, em até 5 vezes.
CF: Você afirmou que o Voto Legal surgiu em 2016. Qual foi o impacto de seu uso nas eleições municipais daquele ano?
TR: Desde 2016, as empresas estão proibidas de realizar doações. Porém, o financiamento por pessoas físicas mostrou-se um grande obstáculo, devido à burocracia e à dificuldade técnica de construir uma campanha com base em pequenas doações.
Apesar das pequenas doações — inferiores a R$1.000 — constituírem 80% das doações realizadas nas últimas eleições, elas não representam nem 1% dos recursos financeiros utilizados nas campanhas eleitorais.
Em 2016, o AppCívico, que trabalha com soluções de tecnologia para a renovação política, e o MCCE (Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral), idealizador da lei da Ficha Limpa, juntaram forças para desenvolver e oferecer uma solução viável de arrecadação de recursos por meio de doações de pequenos valores usando as ferramentas digitais, com todos os obstáculos que a lei e a conjuntura oferecia. Trata-se do Voto Legal.
O projeto utiliza a tecnologia blockchain para realizar rastreabilidade dos recursos doados. Ele foi utilizado nas eleições de 2016 por mais de 130 candidatos nas diversas regiões do Brasil, que conseguiram apresentar — de maneira transparente — todas suas contas de campanha online e em tempo real. Considerando todas as doações que foram realizadas para esses candidatos, dentro e fora do Voto Legal, o eleitor teve a oportunidade de acompanhar e monitorar um total de R$6.072.542,67 que foram doados para estes candidatos.
CF: O Voto Legal é a única iniciativa da AppCívico que utiliza a tecnologia blockchain?
TR: Sim, mas teremos em breve um novo projeto com blockchain, que não será utilizado no processo eleitoral.
CF: De que forma o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) enxerga o uso do registro de doações em blockchain pelos candidatos?
TR: Todos os recibos do Voto Legal possuem uma referência sobre o bloco da rede pública de blockchain utilizada, possibilitando não só ao TSE, mas qualquer ator, visualizar todas as doações registradas. Nas próximas semanas, vamos lançar uma interface visual para explorar os dados eleitorais, para facilitar a utilização de um número maior de pessoas.
CF: A empresa realizou algum levantamento demográfico sobre quais estados utilizaram mais o serviço do Voto Legal?
TR: De maneira geral, existem candidatos de todos as regiões no Brasil, do Acre ao Rio Grande do Sul. Porém, candidatos do Sudeste são em maior quantidade, provavelmente devido à proporção.
CF: Em uma conversa anterior, você comentou que a empresa migrou da blockchain do Ethereum para a Decred. Qual foi o motivo da mudança?
TR: Além da questão do custo por transação ser um diferencial no caso da Decred, ela possui componentes voltados à governança que se encaixam perfeitamente com a necessidade do VotoLegal, e que vai permitir uma expansão de mecanismos de confiança. Utilizamos o DCRTime, assim como também fomos inspirados pelo sistema de governança de propostas do desenvolvimento de sua moeda (sic), a Politeia. Atualmente, há uma centralização de poder muito grande nos políticos, ao mesmo tempo que eles não tem ferramentas para dividir a responsabilidade com mais atores na sociedade. Temos uma janela de oportunidade na mão na qual podemos, muito mais do que digitalizar a política, mudar a maneira como atuamos em sociedade.
CF: 2018 provavelmente será uma eleição marcada pelo alto custo, com o fundo partidário previsto em quase R$2 bilhões. De que forma uso do Voto Legal pode ajudar a evitar possíveis desvios e fraudes nas campanhas?
TR: O grande problema de um fundo partidário desproporcional como o que temos atualmente é que ele dificulta uma renovação política. Pois é evidente que o dinheiro elege a maioria do nosso congresso, pois ele é distribuido com base na representatividade atual. Temos que ter um fundo público, desde que ele fortaleça a representatividade da população e não o congresso atual. Há diversos experimentos no mundo ocorrendo, eu escrevi sobre isso nesse artigo.
CF: Você acredita que a tecnologia blockchain pode ter, dentro da eleição, usos que possam ir além do registro de doações de campanha?
TR: Sim, principalmente se tornar uma moeda eleitoral, como coloquei acima. Mas, precisamos também de confiabilidade em outros aspectos. Como por exemplo, a transparência de plataformas digitais para publicidade política que possa evitar desinformação, assim como nas nossas urnas eletrônicas.
CF: Partindo para o assunto mais esperado: a campanha de Marina Silva. Explique para nossos leitores como a campanha dela utilizará a blockchain.
TR: Todas as doações recebidas pela Marina Silva irão gerar uma “hash” com as informações sobre os doadores e como ela foi realizada. Inclusive, com a versão do software utilizada para processar o pagamento, ou seja, um “hash” sobre o commit da tecnologia utilizada no momento da doação que pode ser visualizado no GitHub, por exemplo. Dessa maneira, não temos que esperar que contadores ou a equipe da campanha façam a prestação de contas, e então o TSE publique no seu site, para que então possamos ter acesso aos dados. Todas as doações estarão disponíveis em tempo real em forma de “hash”; assim, caso qualquer pessoa faça qualquer alteração em alguma informação sobre a doação, isso será facilmente descoberto. Trata-se de um compromisso muito importante para o combate ao caixa dois, pois todo o processo de doação estará disponível para escrutínio público. Muito além de uma campanha transparência, é uma campanha que oferece confiabilidade sobre seu processo de doação.
CF: O contato para o uso do Voto Legal partiu da própria campanha da candidata ou vocês que levaram a iniciativa à sua equipe?
TR: O VotoLegal é uma plataforma aberta e está disponível para qualquer candidato, basta acessar aqui e fazer a adesão.
CF: Algum outro candidato à presidência demonstrou interesse em utilizar o Voto Legal?
TR: Sim, estamos sendo sondados por diversos candidatos.
CF: Para 2018, qual a expectativa do projeto em termos de quantidade de candidatos que irão utilizar o registro em blockchain para suas doações?
TR: O financiamento coletivo é algo muito novo no Brasil e também disputa um espaço com o fundo público que há um quantia de dinheiro desproporcional. Será uma ferramenta de quem está buscando uma nova maneira de fazer política e campanha eleitoral. Esperamos um número superior a 200 candidatos consigam impactar significativamente sua campanha. Há o caso muito conhecido sobre doações de pessoas físicas em um processo eleitoral, que foi nos Estados Unidos em 2008: a primeira eleição de Barack Obama conseguiu arrecadar mais de US$750 milhões em 21 meses, através de mais de 3,5 milhões de apoiadores.
CF: O pré-candidato do partido Novo, João Amoedo, já se manifestou publicamente a favor do uso da blockchain para registros em substituição ao sistema de cartórios. Você acredita que possamos chegar a ter um sistema notarial e registral de forma descentralizada no futuro?
TR: Apenas digitalizar a centralização atual de diversos sistemas, como o sistema notarial e registral, não retorna benefícios de bem público. Atuar com blockchain de maneira pública exige um precedente que seja focado em um ecossistema, e não em um único sistema. Só teremos o uso efetivo de tecnologias descentralizadas quando existir diversas plataformas atuando de maneira complementar, fortalecendo a confiabilidade entre si. O papel de governos na digitalização da nossa sociedade é fortalecer a confiança.